quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Apito envenenado (I)

O processo Apito Dourado foi calamitoso para o futebol português. Tornou pública e explícita a realidade de vazio de poder em que ele existe, e essa queda do poder na rua possibilitou que «esses dealers e esses ratos de esgoto» definitivamente se apoderassem dele. Mas de todos os poderes que caíram e continuam a cair em desgraça na sequência do Apito Dourado, houve um que perdeu mais do que todos os outros: o quarto.

Parte I – Os poderes instituídos

O Apito Dourado não foi apenas mais um caso de comprovada corrupção – foi o caso-Dreyfus do futebol português. As suas repercussões totais ainda não são compreensíveis, mas é muito provável que o que temos agora seja o que venhamos a ter no futuro – num futuro muito longo, com estes e com outros «ratos de esgoto».

No Apito Dourado a demagogia ganhou à democracia, e isso foi, claramente, uma derrota do poder político. Os políticos não tiveram a força suficiente para controlar a situação e impor a autoridade do Estado sobre um sector estratégico da sociedade portuguesa, sobretudo porque não sentiam ter a legitimidade suficiente para isso. Se a tivessem sentido teriam aproveitado a oportunidade e vincado o seu poder.

A polícia portuguesa foi humilhada pelos burocratas e pelos advogados escroques, vendo-se, para cúmulo, ridicularizada por fazer o seu trabalho em condições insuportáveis.

Os tribunais portugueses foram igualmente manietados pelas leias criadas pelos corruptos para se preservarem, e à situação de corrupção generalizada; leis feitas para tornarem praticamente impossível uma condenação. Vendo-se perante um caso nítido de corrupção, os tribunais, não podendo ir além do poder que lhe é dado pela lei, tiveram de libertar os corruptos.

A Liga de Clubes, numa situação frágil por ser constituída e dominada pelos próprios clubes que estavam a ser julgados, aventurou-se a tentar impôr um mínimo de ética apenas para acabar desautorizada pela FPF, uma estrutura totalmente manipulada pelo polvo de influências que apodreceu o futebol português durante os últimos 60 anos.

Neste aspecto, o Apito Dourado terá sido uma facada letal na Liga de Clubes. Todas as competências promocionais, organizativas, económicas da Liga são secundárias perante a sua função principal, aquilo para que foi, tacitamente, criada: moralizar o sector da arbitragem.
Ao não conseguir fazer compreender aos clubes a necessidade urgente de aproveitar a oportunidade do Apito Dourado para sanear, decisivamente, a arbitragem, a Liga deixou de fazer sentido – e é por isso que os novos estatutos das federação desportivas, impostos pelo anterior Governo, lhe vão retirar os poderes sobre o sector, colocando a sua extinção, por mera obsolescência, a prazo, e com o sangue a esvair-se lentamente. Veremos se dura mais cinco anos, ou se o futebo regressa por inteiro à FPF antes disso.

Os novos estatutos são a reacção política ao Apito Dourado, mas não só a reacção foi fraca como foi tardia. Os políticos tiveram medo – do Porto, leia-se. Do Porto-clube e do Porto-cidade. Em vez de serem audaciosos e corajosos foram… políticos. Neste momento, a reacção dos políticos já está a ser tomada de assalto pelos «ratos de esgoto», como se vê pelas movimentações em redor da eleição do presidente da FPF.
Os novos estatutos vão parir uma ratazana gigante. A oportunidade já passou. A janela esteve aberta durante alguns meses. Aí, tudo teria sido possível. Agora acabou. A podridão está para durar. Quando não for liderada por Pinto da Costa será por qualquer um dos outros que estão na fila para lhe suceder, quer a Norte quer a Sul.

No final do processo Apito Dourado, um sistema corrompido sacrificou o seu elo mais fraco, o rabo da serpente, para salvar a cabeça. Deixou cair o Boavista para não ter de atacar o Porto, mais culpado e mais responsável. Esta é a verdade, por mais voltas que se dê. Tudo o resto é argumentação errónea.

Isto não quer dizer que os únicos clubes corruptos em Portugal fossem o Boavista e o Porto. Quer dizer que o Apito Dourado deveria ter resultado numa punição exemplar de Boavista e Porto porque eram esses dois clubes, sobretudo, os implicados naquele processo. A sequência natural seria desencadear um efeito bola de neve, abrir-se um Apito Encarnado, um Apito Verde, uma colecção de apitos com mais de trinta anos, porque no momento em que as pessoas sentissem que já não existisse impunidade fariam o que qualquer pessoa deseja fazer: libertar-se. Falar. Redimir-se. Regenerar-se.

Não rejeito a teoria da conspiração – que o Apito Dourado tenha sido desencadeado para atingir especificamente o Porto, como parte de um plano para favorecer o Benfica na secretaria, ante a incapacidade deste de vencer dentro do campo. Não rejeito, mas aceito muito mais facilmente a explicação mais simples e mais óbvia: a de que o Porto e o Boavista dominavam o sistema de corrupção instituída e que, por isso, foram facilmente apanhados em flagrante delito.

A questão real não é tanto os objectivos ou a natureza da investigação. A questão é que os tentáculos do polvo seriam de tal forma longos que ninguém ficaria incólume, e os grandes clubes, que são quem historicamente sempre tentou dominar os bastidores e a arbitragem, iriam ter de chegar a um compromisso. O Porto não cairia sozinho porque é demasiado importante para isso e porque Pinto da Costa sabe demasiadas coisas para admitir ir a fundo sozinho. Um Porto, um Benfica, um Sporting caírem para a terceira divisão seria o fim do futebol em Portugal como o conhecemos. Mais verosímil seria que, mediante alguns compromissos mútuos, chegassem a um acordo para pôr o conta-quilómetros a zero e, forçados à boa vontade, regulamentados por uma ordem nova em que os actos desonestos têm consequências reais, partissem para uma era verdadeiramente nova no desporto português, sacrificando quem tivessem de sacrificar.

A oportunidade que se perdeu no Apito Dourado foi essa: a de regenerar o futebol português. Mas para isso, teria de haver sacrifícios reais. Teria de se matar o rei. Ou pelo menos convencê-lo a abdicar. Fazer-lhe uma proposta que ele não pudesse recusar. Menos do que isso, como se viu, seria igual a nada. O futebol português dos últimos trinta anos é um homem, e esse homem é Jorge Nuno Pinto da Costa – um homem inteligente, um presidente praticamente exemplar na gestão política e desportiva do seu clube, um dos melhores, senão mesmo o melhor dirigente desportivo do mundo, mas alguém com uma mácula fundamental: um homem que cedeu à tentação (ou que sucumbiu à necessidade) de explorar a corrupção para atingir os resultados.

Ao contrário do que se possa pensar, Pinto da Costa não é intocável. Pinto da Costa teria caído. Tem inimigos suficientes para isso, independentemente dos amigos que guarda nas gavetas. Mas, para que Pinto da Costa caísse, os políticos (que são os únicos profissionais suficientemente hábeis para o derrubar) teriam de ter sentido um apoio fundamental – bastava esse, mas esse era fundamental: o apoio da opinião pública. E a opinião pública é a comunicação social.

Foi neste ponto que o quarto poder falhou tragicamente.

 (amanhã há mais)

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