terça-feira, 6 de setembro de 2011

Cemitérios

(comentário publicado no blog Entrada a Pés Juntos em 3-9-2011)

Pelo que percebo, a intervenção do «pensorapido» vai no sentido de dar mais importância ao erro do Ricardo do que a uma eventual justificação. É uma posição legítima, não digo que não. Depende um bocado da severidade ou da tolerância com que se encara os tais deveres/obrigações e os erros (sobretudo, e normalmente, os dos outros…)

O Ricardo Carvalho errou, e ainda não vi ninguém (a começar por ele próprio) a dizer que não errou. E digo mais: a FPF devia, mesmo, punir o jogador com uma suspensão, porque ir à Selecção não é o mesmo que ir à cantina, tem de haver respeito pela instituição e a forma de fazer as coisas é importante. É por isso que existem protocolos, formalidades, burocracias – não é só para chatear, é para preservar as instituições e, indirectamente, o que elas representam. (Prefiro não me alongar – mais… – sobre quantos dos actuais dirigentes da FPF deviam estar suspensos a termo indeterminado por traição ao futebol português...)

O que me incomoda aqui é a mentalidade do jogador descartável.

Falemos sobre «a qualidade do PAPEL» que Ricardo Carvalho desempenhou até hoje. Analisemos a sua carreira. Andou pelo Leça, por outros clubes menores, como tantos outros ex-juniores do Porto, Benfica ou Sporting, e subiu a pulso. Só aí é um em cem.

Num futebol cada vez mais cosmopolita, em que os argentinos e os paraguaios chegam a metade do preço, impôs-se, como português, numa das melhores equipas de sempre do nosso futebol – o Porto de Mourinho, que tirou o futebol português da segunda divisão e nos fez, novamente, acreditar que podíamos competir com os ricos, como fazemos hoje.

Ao mesmo tempo tornou-se numa peça central da melhor selecção portuguesa de todos os tempos – que me desculpe o pessoal do preto-e-branco, mas comparem a equipa do Eusébio (3.º lugar num Mundial) e o que esta selecção portuguesa conseguiu (para não ir mais longe) entre 2004 e 2010 e não há, sequer, proximidade; a de agora é que foi, mesmo, a nossa geração dourada, e passarão trinta anos até haver outra, garanto-vos.

Jogou e foi campeão no Chelsea e transferiu-se, aos 32 anos, para o Real Madrid, onde confirma, na segunda melhor equipa do Mundo, aquilo que já se sabia: que é um dos dez melhores defesas-centrais dos últimos 6/7 anos na relação qualidade-produtividade.

Quando outros jogadores, depois do Mundial, começaram a pensar mais neles que na Selecção, poupando nos quilómetros para terem pernas para ganhar dinheiro na Turquia, ou na Rússia, ou em Espanha durante mais um ou dois anos, e no meio do circo do Queirós, quando podia ter ido à vida dele que ninguém lhe levava a mal, o Ricardo Carvalho ficou – apesar de estar num clube de máxima exigência e de já estar na recta final da sua carreira.

Foi desta forma que Ricardo Carvalho desempenhou o seu PAPEL.

A minha simpatia pelo Ricardo Carvalho é a mesma que tenho por todos os jogadores honestos, rectos e leais, que é o que eu acho que ele é, embora o conheça tanto como qualquer adepto vulgar, pelos jornais e pela televisão.

E o que é que o Paulo Bento nos disse? Que este jogador não ganhou, no campo, ao longo de uma carreira de 14 anos, o «ESTATUTO» para receber uma palavra no momento em que vai deixar de ser titular da Selecção. «E se estás mal, muda-te», podemos acrescentar. (Ao que ele respondeu mudando-se, mas da pior maneira, com uma despedida à francesa…)

Pergunto: se um Ricardo Carvalho (ou um Ronaldo, ou um Figo, ou um Pauleta, ou um Rui Costa, ou um Eusébio) não tem estatuto, quem é que tem estatuto?

Pergunto mais: se ninguém tem direito a ter estatuto, se somos todos iguais independentemente do nosso desempenho, isto tudo serve para quê? Onde é que cabe o mérito, se não há recompensa? Já pensou que a «ineficiência» de que fala pode vir não dos «direitos adquiridos» mas precisamente do sentimento de que não há direitos adquiríveis? Onde é que entra o mérito? O que é que transmitimos a quem vem tomar o nosso lugar? «Olha pá, tu até és bom, mas não te preocupes muito com isso porque não tens mais direitos que um inútil qualquer. Desenrasca-te, mas é, porque, no fim, podes ter a certeza que o buraco é igual para todos.»

Aconselho toda a gente que um dia vá a Washington a visitar o cemitério de Arlington e a testemunhar a reverência com que os americanos tratam os que caíram em combate. Não é provincianismo, nós também já fomos e podemos voltar a ser assim. Mas aquele cemitério é uma lição prática sobre como se constrói uma Nação, sobre valores e cultura.

Este episódio do Ricardo Carvalho, que agora nos parece tão fácil de avaliar como uma vitória da famosa «disciplina» do Paulo Bento (que eu também acho que é honesto, recto e leal, e que também acho que cometeu um erro), é, na verdade, uma derrota no processo de construção de uma identidade forte na Selecção Nacional.

Porra, escrevi para caraças… Não há limite de caracteres para esta m....?

P. S. – O Ricardo Carvalho é tão bom tipo que até para dizer que o Paulo Bento era mercenário se enrolou todo. Aquilo já deve andar ali pelo meio «assessoria» dos Mous…

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