quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Doping

Já sei que depois de dizer isto as minhas hipóteses de ser eleito presidente da Junta cá da terra vão por água abaixo, mas não tenho nada contra o doping, nem acho que o doping seja um problema real.
Acho que o doping encerra dois tipos de problema, ambos ilusórios: um problema para o atleta que se dopa e um problema para os outros.

O problema dele

Em relação ao primeiro problema, da minha parte, resolve-se em duas penadas: cada um é responsável pelo que faz com o seu corpo. Se existe um verdadeiro problema, neste caso, é o da cortina de fumo que se lança à volta do doping tornar essa realidade obscura e fazer prosperar o chamado doping amador, feito por conta própria pelos atletas, sem o apoio médico que existe nos clubes bem organizados, sem se saber o que se está a meter, quais as consequências, se a dose é aquela ou outra. A diabolização do doping faz com que um desportista vulgar corra mais riscos do que o doping em si.

Daí para a frente, nada a discutir. Cada um é livre de fazer do seu corpo o que quiser, e quem acha que não, quem decide invocar religiões e morais para se meter na vida dos outros, deve certificar-se, antes de botar sentença, que o seminarista de quem anda a receber conselhos não esteve, cinco minutos antes, a roubar, a mentir, a intrigar, a comer uma brasileira no Calor da Noite ou, pior ainda, a comer um brasileirinho de escola primária. Quem se chocar com isto que vá a Fátima, ou à capelinha da praia de Matosinhos, que lá também muita gente muito crente que depois passa a vida a fazer filhadaputices aos outros.
(E pronto cá vão os últimos 500 votos…)

Curiosamente, ninguém quer saber realmente desta parte do problema. As pessoas estão-se pouco borrifando para o que acontece aos desportistas que se dopam. As histórias do testículo, dos dois testículos, dos três testículos, são contadas mais pela bizarria que pela comiseração. São «anedotas Fukushima».
As pessoas preocupam-se sobretudo com o acontece à competição quando os atletas se dopam.

O nosso problema

Primeiro engano: o doping estraga uma competição.
Não é verdade. O que acontece à competição quando os seus atletas de dopam é ficar melhor. Isso é comprovável até cientificamente. Todas as competições desportivas do mundo são hoje mais bem jogadas, ou mas bem executadas. Os records estão constantemente a cair, faz-se tudo melhor.

Segundo engano: o doping facilita a vida aos atletas.
De uma forma geral, não é verdade. Na esmagadora maioria das vezes o doping é usado não para cortar o volume de trabalho (leia-se treino) de um atleta mas para o aproveitar ao máximo. Um atleta dopa-se, sobretudo, ou durante os treinos, ou quando o nível de exigência da competição é elevadíssimo. Quem não trabalha arduamente geralmente nem quer doping nem aproveita os seus efeitos, porque sem trabalho o doping não serve para nada. Exceptuando alguns casos de abuso evidentes, o doping não transforma um atleta banal num campeão, transforma um grande atleta num campeão.

Terceiro engano: quem se dopa são eles.
Há uns anos estava a falar com um atleta português de nível mundial e, na minha ingenuidade, disse-lhe que enquanto eles estivessem todos mamados não havia hipóteses. Ele embaraçou-se e, com um bocado de vergonha à mistura, disse-me: «Ó Hugo, sabes, se a gente não fizer nada nem sequer consegue andar ao pé deles.»
Fiquei zangado quer por o ter obrigado a passar aquela vergonha quer por ter sido tão estúpido. Evidentemente que, se nem todos se dopam, quem compete ao mais alto nível tem de se dopar. É uma premissa fundamental. Faz parte do ofício, como treinar, descansar, comer legumes, fazer fisioterapia e curar lesões.
Quem pensar que o desporto de alta competição dá saúde a alguém ou que as famosas consultas de Zidane com o dr. Ferrari eram para receitar aspirinas está louco.
Não acredito que haja algum desportista de primeira classe que não se dope – de uma outra maneira, e já vou dizer o que quero dizer com isto.

Quarto engano: o doping provoca concorrência desleal.
Quando todos se dopam – todos entre os melhores, entenda-se – a única forma de haver concorrência desleal é quando um tipo de tecnologia de dopagem só está ao alcance de alguns. Não digo que isso não pudesse ser verdade há uns anos, quando, sobretudo no Leste europeu, os laboratórios de medicina desportiva eram autênticos Projectos Manhattan. Mas, depois da queda do muro, a ciência do doping – que também sempre esteve muito desenvolvida nos Estados Unidos, diga-se, mas num regime mais aberto, claro – globalizou-se. O mercado seguiu o seu curso normal e, hoje em dia, é tão fácil aceder a bons nutricionistas do desporto na Austrália como na Grécia ou em Espanha, onde existe um dos sistemas de doping institucionalizado mais activos do mundo. (Os espanhóis são assim: copiam tudo, mas quando copiam conseguem fazer melhor que os outros.)

Quinto engano: o doping é a única forma de concorrência desleal no desporto.
Digam isso aos milhões de indianos que têm potencialidades físicas para serem os melhores corredores de fundo, halterofilistas, futebolistas ou xadrezistas do mundo e que, pura e simplesmente, nem sequer têm uma carcaça para comer.
De acordo, não sejamos tão despropositados. Vamos tornar as coisas mais terráqueas. Um nadador português que não tem acesso a máquinas de optimização de treino, ou dinheiro suficiente para vitaminas, ou que só pode treinar metade do que devia, está ou não está numa situação de concorrência desleal com um francês, por exemplo, que tem todos os meios, fatos de pele de tubarão, uma piscina só para si, e que compete directamente com ele?

Um atleta de um país pobre, ou de uma região pobre dentro de um país, ou de uma família pobre, que tenha o mesmo potencial doutro atleta de um país rico, com todas as condições necessárias para atingir o máximo de si próprio, está, ou não, numa situação de desvantagem praticamente irrecuperável?

Um canoista português que não se dope queixa-se de um outro que se dopa, mas será que percebe que, em Angola, por exemplo, algures no meio do mato, há um miúdo que poderia ser melhor canoísta do que ele que nunca vai ter possibilidade, sequer, de pegar num remo, e muito menos de ser encontrado por alguém que reconheça o seu potencial?


A questão válida é a seguinte: as vantagens adquiridas por um processo não puramente natural – TODAS as vantagens – fazem ou não parte da competição? Ou seja, a envolvente de um atleta entra ou não na equação daquilo que faz o valor do atleta? Se sim, não faz sentido diferenciar o doping de qualquer outro artifício como os ténis feitos à medida, as bebidas isotónicas, as vitaminas, as máquinas de recuperação física, os períodos de descanso pagos.
Aliás, se há um tipo de vantagem artificial que pode mais facilmente ser minimizada é precisamente a do doping, que, ao contrário dos centros de estágio e das estruturas federativas, está mais ao alcance de todos.


A outro nível, este dilema do doping já se viveu quando os desportistas começaram a tornar-se profissionais. O facto de haver atletas pagos para treinar, com tempo e condições para aperfeiçoarem as suas capacidades, era visto como uma deslealdade para os restantes, originalmente amadores. O que hoje pode parecer uma questão obsoleta, na verdade, não foi um processo fácil. Os Jogos Olímpicos só acabaram com a hipocrisia do amadorismo – numa altura em que praticamente todos os atletas que neles participavam já ganhavam dinheiro – em 1992, em Barcelona, quase cem anos depois da sua primeira edição, exclusiva para amadores.

Também no muito tradicionalista râguebi só há poucos anos o profissionalismo saiu (e discretamente) do armário.

Em todo este processo esteve sempre em causa, mais do que a realidade prática, a idoneidade do atleta. Um profissional era considerado sujo, maculado, da mesma forma que, hoje, se encara um atleta que se dopa como um batoteiro. Demorou cem anos a aceitar o profissionalismo como uma tentativa honesta de ser melhor.

Acredito que o doping vai pelo mesmo caminho. À medida que se assuma que a ingestão de substâncias potenciadoras das capacidades naturais do atleta é uma atitude perfeitamente normal num competidor profissional, a estrutura desportiva vai adaptar-se à realidade. Eventualmente, o caminho será o mesmo, com os atletas que se dopam a assumirem um estatuto diferente dos outros, avisando formalmente que estão dispostos a ir mais além. O anátema irá, lentamente, esvanecer-se, até à altura em que as pessoas não se irão preocupar mais com o facto de haver atletas que se dopam para se passarem a preocupar em regulamentar devidamente o doping, criando maneiras para ele se tornar potencialmente menos danoso. Esse é, aliás, um processo já em curso, com os departamentos médicos dos clubes de futebol, por exemplo, a controlarem cuidadosamente a administração de produtos aos seus atletas, cuidando das doses, das tomas, dos períodos de pausa especificamente para cada atleta.

Na indústria do futebol, para falar, então do caso inglês que está a dar brado, o recurso ao doping está mais do que assimilado como componente do trabalho.
Daqui a trinta anos já ninguém irá querer saber se o jogador X ou Y se dopa, mas se se dopa como deve ser, se o Zé do Benfica está tão bem dopado como o Manel do Porto, porque se não estiver tinha de estar.


Nessa altura haveremos de estar a tratar de outro problema que «vai acabar com o desporto». A manipulação genética, por exemplo. «Qual é o sentido de fazer uma competição se se pode construir um desportista à medida para este jogo?», perguntar-se-á.

E, também nessa altura, haverá os conservadores, que acham que tem de haver uma maneira de voltar a pôr a caixa na prateleira onde sempre esteve, e os liberais, que acham que, depois de vermos o que está lá dentro, já não faz sentido voltar a meter a caixa na prateleira.

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