sábado, 24 de setembro de 2011

Mais que um jogo

Não, o jogo de ontem não foi apenas mais um resultado, nem o facto de ter sido disputado á sexta jornada lhe retira importância.

1 - Já tinha dito porque razão é que, para mim, os dois jogos entre Porto e Benfica serão fundamentais na luta pelo título. A diferença entre estas duas equipas e as equipas de um chamado terceiro nível do campeonato – Guimarães, Nacional, Marítimo, Académica, Paços de Ferreira –, imediatamente a seguir a Sporting e Braga, é, actualmente, demasiado grande para permitir prever uma perda de pontos significativa nesses jogos. Não digo que não vá acontecer, mas serão poucos pontos. O Benfica já jogou com três dessas equipas e não perdeu nenhum, por exemplo. E é nesses jogos que, em campeonatos em que o campeão não é categórico, se perdem muitos pontos. Isso não acontecerá este ano. Benfica e Porto vão fazer muitos pontos.

Nesta perspectiva o Porto-Benfica de ontem valia sete pontos – três da vitória, mais três da derrota do adversário e um ponto extra num eventual desempate pontual.

Sim, é verdade que nunca aconteceu as equipas chegarem empatadas em pontos ao fim, mas o simples facto de haver essa prerrogativa condiciona a forma de jogar da equipa que está em desvantagem. Uma vitória do Benfica na Luz obrigaria o Porto a fazer mais um ponto do que o que, em princípio, teria de fazer para ser campeão.

É um factor objectivo, que se torna particularmente importante quando se perde poucos pontos e se aponta para uma diferença pontual potencial, no fim do campeonato, de quatro ou cinco pontos entre as duas equipas – dois empates em trinta jogos.

Muitos dos bons resultados conquistados pelo Porto na Luz nos últimos vinte anos resultam tanto da qualidade das suas equipas como da possibilidade de abordarem o jogo de forma defensiva, em que um empate era um bom resultado – tal como o de ontem foi bom para o Benfica, não por ser uma equipa «pequena», como disse o Vítor Pereira. Não me lembro do último empate do Porto na Luz que tenha sido um mau resultado para o Porto, mesmo quando acabava o campeonato com vinte pontos de avanço, mesmo quando o Benfica acabava em terceiro ou quarto. É uma falácia, que desmascara a pressão a que o treinador do Porto está sujeito neste momento.



2 – Continuo a não acreditar na possibilidade de um Sporting campeão. Diz o Record, cheio de fé que o Sporting pode ficar «só» a três pontos da liderança esta noite. Eu digo o contrário, O Sporting ainda não teve um jogo realmente difícil esta época e, na melhor das hipóteses, mesmo depois de já ter havido o Porto-Benfica, pode ficar, na melhor das hipóteses, e com seis jornadas disputadas, a três pontos deles. É muito mau.

Mas há um cenário que, após o empate de ontem, e dado o crescimento natural da equipa, se torna cada vez mais provável: o de o Sporting vir a ter importância indirecta mas decisiva na decisão do primeiro lugar.

Benfica e Porto têm, cada um, seis pontos de alta pressão a disputar com o Sporting, num contexto em que uma derrota pode significar a perda do campeonato.

E aqui há três pontos a considerar:

- Domingos foi contratado para ganhar ao Benfica mas também para vincar distâncias entre Sporting e Porto, e vai sentir mais pressão neste segundo aspecto do que no primeiro. Ou seja, para se afirmar como treinador de corpo e alma no Sporting, Domingos vai ter de pôr mais ênfase no jogo contra o Porto do que no jogo contra o Benfica;

- na primeira volta o Sporting joga na Luz e recebe o Porto. É mais provável que, na altura em que recebe o Porto, o Sporting ainda tenha a época relativamente em aberto, o que será mais difícil de acontecer no final da segunda volta, quando recebe o Benfica e vai às Antas na última jornada. Na Luz, o Sporting vai jogar para o empate. Em Alvalade, com o Porto, vai jogar para ganhar;

- historicamente, é mais fácil ao Benfica encarar para ganhar um jogo com o Sporting do que com o Porto. Da mesma forma, historicamente o Sporting complica bastante a vida ao Porto, porque dá mais importância aos jogos com o Benfica e joga mais à vontade com o Porto. Para o Benfica, é favorável meter o Sporting no barulho do título, pois retira alguma da vantagem que o Porto tem em relação ao Benfica num confronto directo e a dois.



3 – Outro dado revelador da importância do resultado de ontem.

O Porto está a fazer uma época perfeitamente aceitável. Teve um resultado fraco, mas não desastroso (o empate com o Feirense). Todos os outros são resultados normais, incluindo o de ontem, considerando que um clássico é sempre um clássico. Inclusivamente, tem o apuramento para a segunda fase da Champions à distância de um bom resultado, após a vitória com o Donetsk e a derrota do Zenit do Chipre.

Qual é a razão objectiva para haver já tanta contestação a Vítor Pereira? A razão é o complexo Benfica. Um complexo que pode parecer serôdio, dado o ascendente sobre os lisboetas nos últimos anos, mas que continua a ser o motor real da dinâmica portista. O Porto ganha, sobretudo, para ser melhor que o Benfica. Não devia ser, uma vez que já é melhor que o Benfica, mas o Porto não está a conseguir dar o salto mental, e o jogo de ontem foi um péssimo prenúncio.

A operação de limpeza de imagem e de revisionismo histórico que a propaganda do clube está a tentar fazer para dar mais lustro à época dourada do Porto prolongou-se ao jogo de ontem. Para tentarem fazer um contraste com o «antidesportivismo» do apagão da Luz, ontem não houve bolas de golfe, não houve pedradas na televisão, foi tudo muito soft, muito politicamente correcto – até os pequenos cartazes com as frases de psicologia invertida que se viram estrategicamente colocados em volta do campo (no que tem de ser uma manobra organizada pelo próprio departamento interno de comunicação e organização de jogos do clube) eram demasiado pseudo-inteligentes, não apelando à alma mas à razão. Os dirigentes estiveram à vontade, os jogadores portaram-se relativamente bem, muitos sorrisos, muitos abraços, tudo limpinho como o algodão. O Porto tentou usar o jogo de ontem para marcar o início de uma nova era: a era em que, conseguidos os resultados históricos, o Porto já não fazia de um jogo com o Benfica nada de especial.

Correu muito mal. A atitude politicamente correcta não reflecte o espírito real da massa clubista. Para os portistas de base, o grande objectivo continua a ser ganhar ao Benfica. Estão formatados há demasiado tempo nesse sentido. Foram, literalmente, nos últimos trinta anos, educados assim pelo próprio sistema portista. Faltou, ao Porto, a agressividade que lhe deu vantagem nas últimas décadas (uma agressividade extra que, por outro lado, o Benfica raramente sentia necessidade de ter, não fazendo do jogo com o Porto uma ocasião seminal, e que, por isso, o levou a perder tantas vezes), o que indicia que o Porto, pura e simplesmente, não vai conseguir libertar-se do síndroma-Benfica com a facilidade que supõe – havendo mesmo o risco, real, de, não conseguindo dar o salto dimensional para outro lebensraum, para outro espaço vital, cair no mesmo marasmo em que o Benfica caiu, lentamente, quando deixou de ser melhor que o Sporting e Porto e não conseguiu passar a ser melhor que o Liverpool, o Real Madrid ou a Juventus, que eram que estava a seguir.

Novamente, o que faz uma civilização é a sua dinâmica, é o sentido inovador, em contraste com o instinto conservador que sempre se apodera das suas pessoas quando chegam ao ponto de conforto máximo. Faz parte da natureza humana. «A facilidade é inimiga da civilização», disse um grande historiador.

Querem saber porque é que me convenci de que o auge da civilização portista já tinha chegado, e que a partir de agora é, lenta mas inexoravelmente, a cair? Por algo que parece um pormenor, mas que é fundamental: a última grande promessa eleitoral de Pinto da Costa (uma promessa que não tinha de ser feita, note-se). «Fazer o museu do clube antes do final do meu próximo mandato.»

Esta é a mesma pessoa que disse, um dia, e com razão, a propósito de tentar marcar uma diferença entre a glória antiga do Benfica e a glória actual do Porto que «o passado é nos museus». Touché.

As civilizações emergentes não constroem museus. Constroem impérios. Pelo contrário, uma civilização satisfeita sente a obrigação de construir um museu, para mostrar os impérios que já conquistou.

Não digo que um grande clube não possa fazer um museu, pelo contrário, o que digo é que não só fazer um museu é natural como é inevitável. Da mesma forma que é natural e inevitável a decadência que vem depois do apogeu e a necessidade psicológica de guardar e continuar a viver nesse passado.

O Barcelona tem um excelente museu e é a melhor equipa do mundo, mas lembro-me perfeitamente que, há uns anos, o melhor que o Barcelona tinha era o museu, e levou bastante tempo a passar essa fase para voltar a concentrar-se em crescer desportivamente.

Sabem quando é que o Benfica vai dar o seu grande salto real para o futuro? Quando desaparecer o seu museu vivo: quando morrer o Eusébio. Porque aí acabou mesmo uma era.

3 comentários:

  1. Caro Hugo,

    Uma das razões para frequentarmos um qualquer espaço é, sem dúvida, a qualidade e a originalidade do que nesse espaço é oferecido. De cada vez que aqui venho, fortalece-se a constatação de que o tipo de análise que o Religião Nacional oferece é, não só um "produto" de qualidade, mas um produto ímpar, pelo menos na blogosfera (e já agora na imprensa) que conheço, pelo tipo de análise feita a este desporto que é, verdadeiramente, quase uma religião nacional.

    Aqui vai-se muito para além do lugar comum, tão frequente e disseminado. A análise não se limita às questões tácticas, ou aos detalhes da arbitragem. Aborda, de facto, outros aspectos, difíceis de qualificar, mas que parecem fazer todo o sentido, enquanto elementos de análise relevantes para compreender esta "religião". Talvez a melhor definição seja mesmo a de serem aspectos quasi metafísicos. A verdade é que isso resulta em crónicas deliciosas à leitura.

    Partilho da opinião sobre a importância do jogo e da pressão que dele resultará para o Porto e, em particular, para o nóvel treinador, escolhido mais de um mês antes da despedida do anterior ocupante do lugar de sonho. Basta ver a expressão do homem na flash interview. Aquele arzinho de peixe fora de água é mais do que elucidativo.

    Curiosa, também, a análise da razão vs. emoção no comportamento do Porto face ao Benfica. O problema do extremismo fanatizado com que se transformou o Benfica na razão de ser, no alvo final do Porto (ainda tenho bem presente a pronunciação do "o nosso destino é vencê-los", de PdC), é que o seu abandono depois de 30 anos de lavagem cerebral deixará um vazio muito difícil de preencher. De facto, levará, até, a uma perda de identidade relativamente àquilo que o Porto tem sido. Não sei se será suportável e tenho a impressão de que não vai durar muito.

    O que quer que venha a acontecer, os próximos tempos serão interessantes. Assim o Benfica possa corresponder, desportivamente e aproveitar esta janela de oportunidade. Conquistar 2 campeonatos em 3 possíveis poderia ser um passo de enorme importância para o crescimento do Benfica enquanto equipa mais confiante nas suas capacidades de dominação, sendo destabilizadora para o habitual ocupante de tal posição. Tempos interessantes...

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  2. Interessantíssimos, meu caro. Interessantíssimos.
    Sobretudo se acrescentamos ao baralho um clube tão sui generis como é o Sporting, e o seu próprio destino, tão insondável.

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  3. Continuo a deliciar-me,retrospectivamente,com os textos e também com comentários.

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